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A doutrina da imortalidade da alma


Muitas pessoas pensam que a “alma” é uma parte imaterial do ser humano, e mais importante que o corpo. Além disso, a “alma” tem sido frequentemente considerada como a parte imortal ou eterna da pessoa.

 

A doutrina da imortalidade da alma é a ideia de que a alma humana é imortal, continuando a existir após a morte física. Essa crença tem raízes profundas na filosofia e religião, antecedendo o cristianismo e estando presente em diversas tradições culturais e espirituais ao longo da história. Apesar do frequente uso da expressão “alma imortal”, essa terminologia não é encontrada em nenhum lugar na Bíblia.

 

A história secular revela que o conceito da imortalidade da alma é uma crença antiga abraçada por muitas religiões pagãs e posteriormente pelo cristianismo. No entanto, essa doutrina não é um ensinamento bíblico, pois não é encontrado nem no Antigo nem no Novo Testamento.

 

Origens da doutrina

 

O conceito da suposta imortalidade da alma foi ensinado pela primeira vez no antigo Egito e na Babilônia, esses antigos povos acreditavam na vida após a morte, mas as suas ideias estavam mais ligadas a práticas funerárias e ao conceito de julgamento pós-morte.

 

No Egito antigo, a crença na imortalidade da alma estava ligada ao conceito de vida após a morte e ao julgamento divino. Os egípcios acreditavam que a alma era composta de diferentes elementos, como o ka (força vital) e o ba (personalidade), que sobreviviam após a morte e precisavam de preservação do corpo por meio da mumificação para garantir a vida eterna. A ideia central era que a alma, após ser julgada, podia viver para sempre no além, caso fosse considerada justa.

 

Na Babilônia, as crenças sobre a alma também incluíam uma forma de existência após a morte, mas com uma visão mais sombria. Os babilônios acreditavam em uma vida pós-morte no submundo (Irkalla), onde as almas levavam uma existência sombria e desprovida de alegria. Esses conceitos influenciaram outras culturas do Oriente Próximo e ajudaram a moldar ideias sobre a imortalidade em civilizações posteriores.

 

A filosofia grega

 

A ideia de uma alma imortal, criada pelos antigos povos pagãos, foi aperfeiçoada posteriormente por filósofos gregos, especialmente Sócrates, Platão e, em menor grau, Aristóteles. Platão (428-348 a.C.), o filósofo grego e aluno de Sócrates, ensinou que o corpo e a "alma imortal" se separam na morte.

 

A International Standard Bible Encyclopedia comenta sobre a visão da alma do antigo Israel: "Somos sempre influenciados mais ou menos pela ideia grega e platônica de que o corpo morre, mas a alma é imortal. Tal ideia é totalmente contrária à consciência israelita e não é encontrada em nenhum lugar do Antigo Testamento" (1960, Vol. 2, "Death", p. 812). A verdade é que, nem no Antigo nem no Novo Testamento, encontramos essa doutrina.

 

Platão foi um dos principais defensores da imortalidade da alma. Ele acreditava que a alma era uma entidade distinta do corpo, eterna e pré-existente, retornando ao mundo consciente após a morte. Essa concepção aparece em obras como Fédon e República. Os ensinamentos de Platão sobre a imortalidade da alma é uma de suas ideias mais influentes, adotada, desenvolvida e criticada por filósofos e teólogos desde a antiguidade tardia até o início do período moderno.

 

O Evangelical Dictionary of Theology afirma que Orígenes, um antigo e influente teólogo católico, foi influenciado por pensadores gregos: "A especulação sobre a alma na igreja subapostólica foi fortemente influenciada pela filosofia grega. Isso é visto na aceitação de Orígenes da doutrina de Platão da preexistência da alma como mente pura (nous) originalmente, que, em razão de sua queda de Deus, esfriou para a alma (psyche) quando perdeu sua participação no fogo divino ao olhar para a terra" (1992, "Soul", p. 1037).

 

Imortalidade da Alma vs Escrituras

 

A crença de que a alma continua existindo após a dissolução do corpo é especulação, e essa doutrina não é ensinada em nenhum lugar nas Escrituras.

 

Na Bíblia, o termo "alma" (do hebraico nephesh e do grego psyche) frequentemente refere-se à pessoa como um todo, um ser vivo, e não a um elemento imaterial separado do corpo. Em Gênesis 2:7, por exemplo, Deus forma o homem do pó e sopra em suas narinas o fôlego de vida, e ele se torna "alma vivente" (nephesh chayyah). Essa mesma expressão é usada em Gênesis 1:20-21, 24 para os animais, reforçando que "alma" significa criatura viva.

 

Outras passagens confirmam que a "alma" está relacionada à vida física. Por exemplo, Ezequiel 18:4 declara: "a alma que pecar, essa morrerá", indicando que a alma não é imortal. Além dessas, existem inúmeras passagens que afirmam que "alma" refere-se a uma pessoa, é o próprio ser humano. A "alma" pode significar vida, indivíduo, ou até mesmo a essência do ser, dependendo do contexto.

 

Moisés e a imortalidade da alma

 

Segundo a tradição, Moisés teria sido o autor dos cinco primeiros livros do Antigo Testamento: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio, algo também confirmado pela própria Bíblia (cf. Lucas 24:44; 2Crônicas 25:4). Esses livros possuem grande relevância, pois narram eventos fundamentais, como a criação do homem e a definição de sua natureza.

 

Se a existência de uma alma imortal fosse um fato, este seria um excelente momento para mencionar algo tão significativo sobre a natureza humana. No entanto, os cinco livros de Moisés não fazem referência à imortalidade da alma. No relato sobre a criação do ser humano e sua constituição, a visão apresentada é holística, e não dualista (cf. Gênesis 2:7 – ver Parte 3).

 

A Bíblia nos mostra que o mesmo destino reservado aos homens também se aplica aos animais. Afinal, como está escrito: “Porque o mesmo que acontece com os filhos dos homens acontece com os animais: como morre um, assim morre o outro. Todos têm o mesmo fôlego de vida [espírito – ruach], e o ser humano não tem nenhuma vantagem sobre os animais. Porque tudo é vaidade. Todos vão para o mesmo lugar; todos procedem do pó e ao pó voltarão.” (Eclesiastes 3:19-20).

 

É comum a Bíblia igualar os homens aos animais, pelo simples fato de que não há vantagem alguma de um em relação ao outro. Ambos foram formados do pó, e para o pó retornam. Esse conceito resulta em diversas passagens bíblicas nas quais o homem é comparado aos animais, justamente por não possuir nenhuma superioridade sobre eles. Como está escrito: “Todavia, o ser humano não permanece em sua ostentação; pelo contrário, é como os animais, que perecem.” (Salmos 49:12).

 

Tais comparações não fariam sentido se nós, ao contrário dos animais, fôssemos dotados de uma alma imortal que nos diferenciasse no que diz respeito a vida após a morte. Isso constituiria uma clara vantagem em relação a eles.

 

No entanto, a Bíblia mostra que Deus soprou o fôlego que dá vida aos animais da mesma forma que o soprou aos seres humanos (cf. Ec 3:19-20). Ambos possuem o “espírito” [ruach]. (cf. Gn 7:15; Ec 3:19-20; Sl 104:29), que é o que mantém a vida, e ambos devolvem esse ruach na morte (cf. Sl 104:29; Ec 12:7). Além disso, a ambos é aplicado o termo "alma" [nephesh] (cf. Gn 2:7; Gn 1:20).

 

Portanto, não foi concedida aos seres humanos nenhuma vantagem em relação aos animais no que diz respeito ao destino pós-morte. É exatamente por isso que Salomão os iguala completamente ao tratar desse assunto (cf. Ec 3:19-20).

 

O mesmo destino reservado aos homens foi também atribuído aos animais: os seres humanos não possuem a vantagem de ter uma "alma imortal". Deus não colocou no homem uma alma que anda vagando fora do corpo. Moisés, no relato da criação, deixa claro que não há qualquer vestígio de um elemento sobrenatural que possua imortalidade incondicional, com consciência e personalidade após a morte.

 

É evidente que nos cinco livros de Moisés não há qualquer menção a uma vida em um "estado intermediário" entre a morte e a ressurreição. Pelo contrário, quando Caim mata Abel, Deus declara: “O que foi que você fez? A voz do sangue do seu irmão clama da terra a mim.” (Gênesis 4:10).

 

Abel, como pessoa, não poderia clamar nada após a morte, pois, segundo a Bíblia, ele estava em um estado que é caracterizado como “inconsciência” (cf. Ec 9:5-6; Ec 9:10; Sl 146:4; Sl 6:5; Sl 115:17; Sl 13:3; Jó 14:11-12; Sl 30:9; Is 38:18; Is 28:19; Sl 94:17) e como “sono” (cf. Sl 13:3; Sl 25:13; Jó 14:11-12; 1Co 15:6, 20, 51; 1Ts 4:13-15). Assim, o que clamava não era o próprio Abel, mas o sangue dele.

 

Evidentemente, trata-se de uma personificação, e não de uma realidade literal, pois o sangue não possui vida ou personalidade em si mesmo. A personificação de elementos inanimados é um recurso comum nas Escrituras, como exemplificado em Juízes 9:8-15, 2Reis 14:9, Habacuque 2:11, Lucas 10:40, Mateus 3:9, Jó 12:7-8, Gênesis 4:10 e Apocalipse 10:3.

 

Se Abel estivesse vivo em um “estado intermediário”, Deus teria dito que era ele próprio [Abel] quem estava clamando. No entanto, como isso não ocorre, Deus personifica algo sem vida [o sangue] para utilizar a linguagem do “clamor”.

 

Jó e a imortalidade da alma

 

Ainda mais significativo é o que relata outro escritor bíblico tão antigo quanto Moisés: Jó. Este homem, cuja história é narrada em um período que remonta aproximadamente ao ano 2000 a.C., também oferece revelações valiosas sobre a natureza humana. Enquanto Moisés omite e rejeita qualquer indício de uma visão dualista do homem, os diálogos de Jó com seus companheiros (Bildade, Zofar, Eliú e Elifaz) são extremamente ricos e práticos para compreender a condição humana.

 

Em suas reflexões, Jó declara: “Porque eu sei que o meu Redentor vive e por fim se levantará sobre a terra. Depois, revestido este meu corpo da minha pele, em minha carne verei a Deus. Eu o verei por mim mesmo, os meus olhos o verão, e não outros; de saudade o meu coração desfalece dentro de mim.” (Jó 19:25-27).

 

Mesmo há cerca de dois mil anos a.C., Jó já compreendia que só veria a Deus quando, no final dos tempos, o Redentor (uma figura de Cristo) se levantasse sobre a terra. Ele reconhecia que esse encontro não ocorreria antes desse momento, reforçando a expectativa de uma futura ressurreição e não de uma vida consciente em um “estado intermediário”.

 

Jó também afirma: “O homem, porém, morre e fica prostrado; expira o homem e onde está? Como as águas do lago se evaporam, e o rio se esgota e seca, assim o homem se deita e não se levanta; até que não haja mais céus, não acordará, nem despertará do seu sono.” (Jó 14:10-12).

 

Jó nem sequer cogitava que, ao morrer, estaria imediatamente na presença de Deus. Em vez disso, ele revela que precisaria esperar até que não houvesse mais céus para então ver a Deus (cf. Jó 19:25-27). Esse momento ocorreria quando fosse despertado de seu estado, descrito como "sono" (cf. Jó 14:12), reforçando a visão bíblica de que a morte é um período de inconsciência até a futura ressurreição.

 

Para Jó, a morte não era um passaporte para estar imediatamente com Deus, pois ele fala claramente sobre esperar até que "não haja mais céus" (Jó 14:12) e até ser "substituído" (Jó 14:14). A esperança de Jó, assim como a de todos os cristãos, está na ressurreição no último dia, e não na partida da alma na morte. E, como se isso não fosse suficientemente claro, Jó continua a afirmar: “Morrendo o homem, porventura tornará a viver? Todos os dias da minha luta esperaria, até que eu fosse substituído. Tu me chamarias, e eu te responderia...” (Jó 14:14-15).

 

Jó sabia perfeitamente que, "morrendo... morreria" (cf. Gn 2:7). Contudo, ele tinha a firme esperança de ver a Deus no tempo do fim, e somente nesse momento, quando o seu Redentor se levantasse sobre a terra. Este é o momento da ressurreição do último dia (cf. Jo 6:39-40), que o Novo Testamento associa à segunda vinda de Cristo (cf. 1Co 15:22-23). Somente nesse momento é que veremos a Deus.

 

Jó definitivamente não acreditava em uma natureza dualista do ser humano. Isso explica por que ele declara que o único lar pelo qual esperava era a sepultura (Jó 17:13), pois ele não acreditava que o ser humano fosse composto de corpo e alma, com destinos distintos após a morte. Se fosse assim, a sepultura seria apenas o destino do corpo, enquanto a alma, sendo a parte racional, já estaria garantida entre os salvos em algum tipo de Paraíso. No entanto, Jó claramente rejeita essa ideia e crê que seu único destino seria o túmulo.

 

Jó também sabia que, caso morresse (Jó 3:11), não iria imediatamente para junto de Deus, mas permaneceria em “repouso” (Jó 3:13,17; 14:10-12), no mesmo lugar onde estão tanto os justos quanto os ímpios (cf. Jó 3:17-19). Nesse estado, já não se ouvem mais gritos (Jó 3:18) e todos estão em sossego (Jó 3:18), algo impossível para aqueles que estariam em um lugar ouvindo os gritos de espíritos atormentados em meio às chamas.

 

"Ali os maus cessam de perturbar, e ali repousam os cansados. Ali os presos juntamente repousam e não ouvem a voz do capataz. Ali está tanto o pequeno como o grande, e o servo fica livre de seu senhor." (Jó 3:17-19)

 

Jó não tinha a menor visão de uma vida após a morte onde justos e ímpios teriam destinos distintos, mas sim de um lugar onde estão “tanto o pequeno como o grande” (v. 19), os cansados, os prisioneiros e os homens livres (vv. 18-19).

 

A linguagem que descreve o repouso (v. 17) mostra claramente que ele não fala de ímpios sofrendo horrivelmente, gritando entre as chamas de um fogo eterno aterrorizante. Pelo contrário, ele diz que “os maus cessam de perturbar” (v. 17), sugerindo um estado de inatividade. Além disso, já não se “ouvem a voz do capataz” (v. 18), o que seria difícil de se imaginar caso a descrição se referisse a um tormento eterno em chamas infernais.

 

Não há qualquer menção à presença de Deus naquele lugar, nem de anjos, nem de demônios, nem de tormentos, nem de regozijos. O que é apresentado é apenas o simplismo do sono da morte. Isso demonstra claramente que o local de repouso, de inatividade, sem gritos e sem distinção entre justos e ímpios, que Jó descrevia após a morte, não era outro senão a sepultura. Não havia qualquer visão sensacionalista sobre a vida após a morte, muito menos uma imaginação aflorada como um “inferno de Dante”.

 

Em meio a tantas evidências claras de que Jó não acreditava na existência de uma "alma imortal" que lhe garantisse sobrevivência após a morte, os dualistas tentam encontrar uma "brecha" em Jó 26:5, que supostamente "provaria" a existência da alma em um estado intermediário.

 

Algumas traduções em língua portuguesa traduz o versículo da seguinte maneira: “A alma dos mortos treme debaixo das águas com seus habitantes.” No entanto, essa tradução não é fiel aos manuscritos originais. A palavra usada nos manuscritos hebraicos é Há Rephaim, que significa literalmente “os gigantes”, e não “almas”! A tradução de “a alma dos mortos” não corresponde ao que o texto original do hebraico diz, pois, a referência é aos Rephaim e não a “almas” (nephesh).

 

Várias das melhores traduções do mundo mantêm a fidelidade ao texto original, como a Young's Literal Translation, que traduz de forma precisa, dizendo: “Os Rephaim são formados debaixo das águas com seus habitantes”.

 

Os Rephaim foram gigantes (homens de grande estatura) que habitaram na Palestina e em outras regiões, mas foram derrotados por outros povos e, eventualmente, desapareceram. Com o tempo, a expressão passou a ser usada para se referir a qualquer ser de grande porte, como as baleias, por exemplo.

 

Jó 26:5 deveria ser melhor traduzido como “os gigantes tremem debaixo das águas com seus habitantes” – uma clara alusão aos grandes animais marinhos, como as baleias. A tradução de “as almas dos mortos” não corresponde aos textos originais e, além disso, não faz sentido lógico, pois as almas dos mortos não ficariam “debaixo das águas tremendo”.

 

Vale ressaltar também que, para Jó, os ímpios não estavam sendo atormentados naquele momento. Se fosse esse o caso, seria necessário que isso tivesse sido mencionado em algum momento durante seus diálogos ou reflexões com seus amigos, pois eles abordavam com frequência a questão da vida após a morte e a vantagem entre justos e ímpios. No entanto, o que lemos é que os maus não estão no inferno, mas na sepultura, descansando no pó da terra, para o dia do Juízo:

 

"Porque vocês perguntam: Onde está agora a casa do príncipe? E: Onde ficou a tenda em que moravam os ímpios? Será que vocês nunca interrogaram os que viajam? E não levaram em conta as suas declarações, que o mau é poupado no dia da calamidade, e é socorrido no dia do furor? Quem lhe jogará na cara o que ele fez? Quem o fará pagar pelo que fez? Finalmente, é levado à sepultura, e sobre o seu túmulo se faz vigilância." (Jó 21:28-32).

 

Também em Jeremias 12:3, lemos que os ímpios estão “reservados... para o dia da matança” (Jr. 12:3). A punição não é algo já vigente, mas um acontecimento futuro. Em momento nenhum é dito no livro de Jó que a morte seria um prêmio ou um passaporte para um Paraíso. Pelo contrário, a morte é caracterizada como um inimigo.

 

A situação de Jó era tão decadente que até a morte seria a melhor alternativa para ele. Isso porque a morte dos justos era absolutamente igualada a dos ímpios (cf. Jó 21:23-26). Não existia “vantagem” dos bons em detrimento dos maus no sentido de que a alma de todos desceria para a cova com a morte (cf. Jó 33:18, 22, 28, 30).

 

Quando o espírito do homem é retirado, para onde ele vai? Para junto de Deus? Segundo Jó, não exatamente. Ao ser retirado o espírito, o homem não vai para junto de Deus, mas retorna ao pó da terra (Jó 34:14-15). Essa visão não era exclusiva de Jó; o salmista também expressa a mesma realidade: “Quando escondes o rosto, entram em pânico; quando lhes retira o fôlego, morrem e voltam para o pó” (Sl 104:29). Em outro texto, lemos: “Quando o espírito deles se vai, eles voltam ao pó, e naquele dia perecem os seus pensamentos” (Sl 146:4).

 

Os hebreus, ao contrário dos gregos, acreditavam em uma visão holística da natureza humana, rejeitando a ideia de um dualismo entre corpo e alma. Assim, fica evidente que Jó não defendia a crença na imortalidade da alma.

 

Por isso, Jó declara: “Mas os olhos dos perversos desfalecerão, o seu refúgio perecerá; sua esperança será o render do espírito.” (Jó 11:20). Já sabemos que "render o espírito" significa morrer (cf. Mateus 27:50), tendo como destino a cova (cf. Jó 33:18, 22, 28, 30; Is 38:17; Sl 94:17). Podemos notar claramente que a expressão "alma", nestes versículos, refere-se a uma pessoa, a um ser vivente. Por exemplo, em Jeremias 38:17, o profeta declara: "Tu, porém, amaste a minha alma e a livraste da cova da corrupção."

 

Se a alma fosse realmente um fantasma, como sugere a visão dualista dos filósofos gregos, como poderia ela ir para a cova? Afinal, se a alma é considerada imortal, separa-se do corpo após a morte e continua consciente, tal ideia seria contraditória com as Escrituras Sagradas. Portanto, nesse processo, a alma (ser humano) volta para o pó da terra e o espírito (fôlego de vida) retorna para Deus (Ec 12:7).

 

Seria absurdo afirmar que a “esperança” dos ímpios, mencionada por Jó, seria o "render do espírito", ou seja, a morte, entendendo isso como um lançamento imediato em um lago de fogo eterno e atormentador. De forma alguma essa poderia ser considerada a "esperança" deles! Pelo contrário, o render do espírito, isto é, a morte, seria o maior medo dos ímpios, e não sua esperança.

 

É notável que, para Jó, não havia qualquer ideia de vida consciente antes da ressurreição dos mortos. Assim, a situação desses ímpios na terra era tão degradante que a morte poderia ser vista como um “alívio”, já que significava o completo cessar da existência, ainda que temporariamente, até o momento da ressurreição.

 

É evidente, dentro da visão veterotestamentária, que haverá um dia designado por Deus para julgar o mundo (cf. Ec 11:9). Esse castigo, no entanto, será proporcional ao que for merecido e não ocorrerá antes da ressurreição. Caso ocorresse, a morte seria a consequência mais agonizante e aterrorizadora que um ímpio poderia experimentar! Algo assim estaria longe, muito longe, de ser uma "esperança".

 

Fica claro que, para Jó, não havia tormento imediato para os ímpios após a morte, assim como não existia qualquer ideia de vida antes da ressurreição.

 

Para Jó, o homem é mortal e não imortal (cf. Jó 4:17; Jó 10:5; Jó 9:2). Ele declara: “Como pode o mortal ser justo diante de Deus?” (Jó 9:2). Essa visão sobre a mortalidade humana permeia toda a Bíblia, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento (cf. Sl 9:17; Sl 56:4; Is 51:12; Dn 2:10; 1Co 15:54; 2Co 5:4; Rm 1:23). Há inúmeras referências bíblicas que definem a natureza humana como “mortal”.

 

O próprio Deus, em Isaías, reforça essa ideia ao dizer: “Eu, eu sou aquele que os consola; quem, então, é você, para que tenha medo do homem, que é mortal, ou do filho do homem, que não passa de erva?” (Is 51:12).

 

O homem é um ser mortal, comparado a uma simples erva, sem nenhum segmento transcendental que lhe conceda imortalidade. Por isso, ele não deve ser temido (cf. Is 51:12), pois “não passa de erva” (v.12). Essa analogia feita por Deus seria completamente sem sentido se, ao contrário da erva, o “verdadeiro eu” do ser humano fosse imortal.

 

A comparação do homem com a erva deixa claro que ambos compartilham a mesma natureza mortal. Se o homem possuísse uma alma imortal, então, pela lógica da analogia, a erva também deveria possuir imortalidade, o que tornaria o argumento vazio e inconsistente. Contudo, como Deus afirmou, ambos são mortais. Dessa forma, o homem não tem vantagem alguma sobre a erva nesse aspecto (cf. Is 51:12).

 

Além disso, se o “verdadeiro eu” do ser humano fosse imortal, seria razoável esperar a existência de inúmeras referências bíblicas mencionando essa suposta parte imortal. No entanto, em absolutamente todas as passagens onde a natureza humana é discutida, ela é descrita como "mortal" e nunca como "imortal" (cf. Sl 9:17; Sl 56:4; Is 51:12; Dn 2:10; 1Co 15:54; 2Co 5:4; Rm 1:23; Jó 4:17; Jó 10:5; Jó 9:2). Portanto, esse padrão consistente demonstra que o ser humano não é um ser dualista, composto de uma parte mortal e outra imortal, mas é inteiramente mortal, como enfatiza a Bíblia de forma clara e recorrente.

 

Jó também reconhecia que, ao morrer, deixaria de existir: “Por que não perdoas as minhas ofensas e não apagas os meus pecados? Pois logo me deitarei no pó; tu me procurarás, mas eu já não existirei” (Jó 7:21). Se, ao morrer, a alma imortal de Jó fosse levada para junto de Deus, então Deus certamente o “acharia”. O texto é claro em afirmar que, após a morte, Jó já não existiria, reforçando a ideia de que não há continuidade imediata de existência após a morte, nem mesmo junto de Deus. A razão pela qual o Deus onipresente não encontraria Jó é que, ao morrer, ele já não existiria. Esse mesmo princípio é expresso no Salmo 39:13. Não se pode "encontrar" algo que já não existe.

 

Nem Moisés, ao tratar da criação do ser humano, nem Jó, nas suas conversas com os amigos, acreditavam na imortalidade da alma. Moisés rejeita a ideia de uma natureza dualista do homem, enquanto Jó nega a existência de um estado intermediário para as almas. O ponto em comum entre ambos é a rejeição à ideia da imortalidade da alma. Além disso, a expressão "alma" refere-se a uma pessoa (Gn 2:7), e não a um ser imaterial que habita dentro de um corpo material.

 

A Bíblia é categórica ao afirmar que o único que possui a imortalidade é Deus. Na carta do apóstolo Paulo a Timóteo ele faz essa afirmação: "...bendito e único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores, o único que possui imortalidade, que habita em luz inacessível, a quem ninguém jamais viu, nem é capaz de ver." (1Tm 15-16). Portanto, a “alma”, não é apresentada na Bíblia como algo imortal separado do corpo, mas como a totalidade do ser vivo.

 

Influência judaica

 

A crença na imortalidade da alma chegou aos judeus pelo contato com o pensamento grego e principalmente pela filosofia de Platão, seu principal expoente, que foi levado a ela pelos mistérios órficos e eleusinos nos quais as visões babilônica e egípcia eram estranhamente misturadas" (Jewish Encyclopedia, 1941, Vol. 6, "Immortality of the Soul", pp. 564, 566).

 

A tradição judaica, inicialmente baseada na Torá, não enfatizava a imortalidade da alma. Em vez disso, focava no "sheol", conceito bíblico hebraico que designa o destino dos mortos, descrito como um lugar subterrâneo, sombrio e silencioso, onde todos vão após a morte, independentemente de sua conduta em vida.

 

O sheol não é um local de recompensa ou punição, mas de inatividade e esquecimento, como mostram várias passagens de Eclesiastes e Jó (ver tópico: Imortalidade da alma vs Escrituras). Com o tempo, esse conceito evoluiu devido a influências externas, como o pensamento grego e persa, que introduziram ideias de recompensa e julgamento.

 

No período intertestamentário (entre o Antigo e o Novo Testamento), influências helenísticas e persas introduziram conceitos mais elaborados de vida após a morte, especialmente entre os fariseus. No Novo Testamento, o sheol é associado ao hades, mas com significados distorcidos pelos cristãos paganizados. Originalmente, o sheol simbolizava o estado universal da morte, mas sua interpretação foi transformada com a introdução dessa doutrina pagã ao judaísmo e ao cristianismo.

 

Adoção pelo cristianismo e a influência da filosofia grega

 

O cristianismo primitivo, nascido no contexto judaico, inicialmente enfatizava a ressurreição do corpo como seu ponto central, em vez da imortalidade da alma. Essa visão está fortemente presente nas cartas de Paulo e nos evangelhos, onde a esperança dos cristãos é a ressurreição dos mortos no fim dos tempos. Esses primeiros cristãos foram influenciados e corrompidos pelas filosofias gregas à medida que se espalhavam pelo mundo grego e romano. Por volta de 200 d.C., a doutrina da imortalidade da alma se tornou uma controvérsia entre os crentes cristãos.

 

Durante os primeiros séculos do cristianismo, especialmente a partir do século II d.C., houve uma fusão de ideias judaico-cristãs com a filosofia grega, particularmente o platonismo. Pensadores como Justino Mártir, Orígenes e, mais tarde, Agostinho de Hipona ajudaram a integrar conceitos platônicos ao pensamento cristão, incluindo a ideia de que a alma é imortal e sobrevive à morte. Agostinho, em especial, foi fundamental na sistematização dessa doutrina no Ocidente cristão. Ele conciliou a imortalidade da alma com a ressurreição do corpo, argumentando que ambas eram complementares.

 

A consolidação da doutrina, críticas e controvérsias

 

A doutrina da imortalidade da alma tornou-se dominante no cristianismo após o Concílio de Latrão V (1513-1517), que declarou formalmente que a alma humana é imortal. Apesar disso, algumas tradições cristãs, rejeitam a imortalidade da alma e a considera como incompatível com a Bíblia, enfatizando a ressurreição como o verdadeiro destino humano.

 

Vários grupos de cristãos estudiosos argumentam que a doutrina da imortalidade da alma tem suas raízes no pensamento grego, e não na Bíblia. Eles apontam que textos bíblicos, como Eclesiastes 9:5 e 1Coríntios 15, enfatizam o sono na morte e a futura ressurreição, em vez de uma alma consciente após a morte.

 

A doutrina da imortalidade da alma não foi "criada" por uma única pessoa, mas desenvolveu-se gradualmente através da interação de filosofias e religiões antigas. O cristianismo a adotou formalmente à medida que se expandiu e dialogou com o pensamento helenístico, especialmente a filosofia platônica, consolidando-a como um dos pilares de sua teologia.

 

Conclusão

 

O texto apresenta uma análise detalhada sobre a doutrina da imortalidade da alma, sua origem histórica, influências culturais e filosóficas, e sua relação com os ensinamentos bíblicos. Ele enfatiza que, enquanto muitas tradições religiosas e filosóficas sustentam a ideia de que a alma é imortal, essa visão não encontra respaldo nas Escrituras Sagradas. Pelo contrário, a Bíblia retrata o ser humano de forma holística, negando a separação dualista entre corpo e alma, e aponta para a ressurreição no fim dos tempos como a esperança central.

 

Além disso, o texto examina a influência de filosofias gregas, como o platonismo, no pensamento cristão, destacando como essas ideias moldaram a adoção da doutrina pela Igreja ao longo dos séculos. Apesar disso, algumas tradições cristãs fiéis as Escrituras continuam rejeitando essa doutrina, defendendo que ela é incompatível com a visão bíblica.

 

Conclui-se que a imortalidade da alma, conforme apresentada biblicamente e historicamente, é mais uma construção filosófica e cultural do que um ensinamento bíblico. A ênfase das Escrituras está na ressurreição e no juízo final, reafirmando a mortalidade humana e a soberania divina.

 

Graça e paz!

Garberson Alencar

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